sábado, 31 de julho de 2010

O espaço sagrado da dança

Toda a roça do candomblé é considerada lugar sagrado. No momento em que o fiel entra no terreiro, entra num lugar
mágico-sagrado. Logo na entrada há o assentamento de um tipo especial de Exu que defende a comunidade e todos os seus filhos. O mundo de fora é perigoso e cheio de dificuldades. Dentro, existem várias provas a serem superadas, mas as filhas-de-santo encontram aliados na luta pela sobrevivência e no caminho místico-religioso. No terreiro há vários lugares sagrados, mais ou menos perigosos segundo a energia que transmitem. Por isso nem todos podem entrar nas casas dos orixás ou circular de noite nos lugares dedicados aos espíritos dos mortos. 
Tanto a rua, o mundo de fora da roça, quanto o próprio terreiro poderiam
simbolizar uma peregrinação, um caminho iniciático, lugar de passagem para
alcançar o barracão, o lugar onde as divindades se manifestam, nas cerimônias
públicas.
O espaço onde acontecem as festas públicas é chamado barracão. É um salão muito amplo, onde, logo na entrada, há uma arquibancada. Do lado direito, sentam-se as mulheres e, do lado esquerdo, os homens. Na frente da entrada, é colocado o trono da Ialorixá, cujo lado direito é reservado às filhas-de-santo e as ebômis com cargo, enquanto o lado esquerdo é reservado aos obás de Xangô, os ministros deste orixá. No lado direito, além das mulheres, está colocada a orquestra com os três atabaques. 
Na sua frente ficam as famílias dos ogãs, hierarquia leiga do candomblé, ou algum convidado particular.
O fiel dança, segundo Wheatley (1983),
ao redor do centro sagrado, um ponto da terra ligado ao céu por um invisível
raio energético, o axis mundi. Nesse ponto estão enterrados os fundamentos da casa, que também são colocados no teto, num lugar diametralmente oposto. 
O centro do barracão é fundamental nas religiões africanas, porque é o lugar onde a árvore mágica liga o céu à terra, conforme Davidson (1972) e Deren
(1997).
Em geral, os lugares sagrados apresentam as mesmas analogias: em cima do ponto sagrado, o céu, o teto redondo e a cúpula tomam a forma da terra embaixo (que é símbolo do feminino e do espaço que contém), uma árvore sagrada na África, um obelisco ou um minarete nos países árabes (símbolos do masculino, do céu e do tempo) ligam a abóbada ao chão. 
Mas nem sempre essa árvore existe visivelmente. No Axé Opô Afonjá, por exemplo, não sabemos por  que motivo não há um poste central. Para Eliade
(1969:26):
O termo roça está próximo do termo aldeia. É um lugar onde se cultivam as plantas e se criam os animais.
De acordo com Vivaldo da Costa Lima: “(…) os
obás de Xangô, são os Ministros de Xangô, o grupo foi  instituído formalmente no candomblé de São Gonçalo, no ano 1937, quando aquele terreiro
estava sob a direção de sua primeira mãe-de-santo Eugênia Ana dos Santos. Os obás, são doze,  dividem-se em duas falanges, seis do lado direito, e seis
do lado esquerdo”. Cada terreiro tem seu próprio fundamento.
Podemos observar, em alguns terreiros de Salvador, como o do jeje Bogum e o terreiro do Cobre, na Federação, ou o mais antigo, a Casa Branca do Engenho Velho, a simbolização da árvore sagrada na forma de um poste central que liga simbolicamente o céu à terra. Em outros terreiros, como no Gantois, a coluna sagrada não existe, mas  permanece a simbologia do centro do barracão.
“(…) o centro da realidade absoluta, assim como todos os outros símbolos da realidade absoluta (Árvore da Vida e da Imortalidade, Fonte da Juventude etc.) encontra-se num centro. O caminho que conduz ao centro é um “caminho difícil”, e isso verifica-se em todos os níveis do real: circunvoluções complicadas de um templo; peregrinações aos lugares santos (Meca, Jerusalém, etc.); peregrinações aventurosas das expedições do Velo de Ouro, da Erva da Vida; todas as dificuldades dos que procuram o caminho para o “si”, para o “centro” do seu ser etc.”
A Criação, em toda a sua extensão, se efetuou a partir de um “centro” e por isso tudo aquilo que é fundado está no centro do mundo. A partir do centro passam dois eixos — um vertical e o outro horizontal — tempo e espaço. Segundo Wheatley existem alguns paradigmas astrobiológicos que formam a estruturação do espaço, ou seja, existe um paralelismo entre o espaço cósmico e o do ser humano, entre macrocosmo e microcosmo. O mundo dos seres humanos é construído à imagem do dos deuses e a harmonia é garantida por meio de rituais.
Assim, o espaço na terra deve ser sacralizado através dos rituais.
O barracão é o lugar externo do culto, é a construção arquitetônica que foi sacralizada e que, pelo fato de deter cerimônias periódicas, torna-se um espaço sagrado. O corpo humano é o lugar interno do culto, receptáculo da divindade e, por si mesmo, sagrado. Esses dois lugares são o teatro da transformação ritual, neles o fiel deixa o mundo cotidiano e chega ao encontro tão assustador, mas tão desejado, com o divino. É somente no espaço sagrado que ele pode voltar à totalidade — sendo sustentado pelo seu grupo e pela experiência da mãe-de-santo e das ebômis — e se comunicar com a divindade.
O espaço do barracão, durante o ritual, é preenchido pelos corpos das sacerdotisas, que logo se transformam em orixás.
Dessa maneira, o espaço está preenchido pelos níveis dos corpos em movimento e pelas direções, que, por sua vez, são os caminhos do corpo no espaço que simbolicamente expressam as várias possibilidades de caminhar em direção ao sagrado. A divindade pode utilizar uma estrada curvilínea mais moderada (como o andar de Iemanjá), ou um caminho que prevê várias mudanças de direção (como o de Oiá ou de Ogum).
Mas há também um outro espaço, ainda mais precioso, o do interior do corpo, no qual acontece a transformação principal: ade deixar entrar o orixá. Pelo fato do corpo ser a representação do macrocosmo, a coluna vertebral simboliza a árvore sagrada, pois liga os pés ao ori, os ancestrais ao orixá, enquanto que os braços abertos mostram a ligação com o social. No momento das danças de transe, o espaço é preenchido mais “densamente” pela a energia dos orixás que o estão utilizando e ocupando em todos os níveis: alto, médio e baixo.

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