Velhos iniciados contam que nos idos e saudosos tempos do candomblé antigo o recolhimento à clausura, onde se processa a iniciação, não tinha duração pré-determinada. O filho-de-santo ficava recolhido no terreiro o tempo necessário à sua aprendizagem de sacerdote e à realização de todas as atividades que os ritos de uma feitura de orixá envolvem. Podia ficar meses, muitos meses, isolado do mundo, totalmente mergulhado na sua iniciação. Isso ficou para trás. Hoje, cada iniciação, que se faz num período que não soma os dias de um mês, tem de ser cuidadosamente planejada, de modo a encaixar os dias de recolhimento do filho-de-santo nas suas férias de trabalho ou nos momentos vagos deixados pelos compromissos da vida secular. O tempo da iniciação passa a ser regulado pelo tempo do mercado de trabalho. O tempo africano do terreiro é vencido pelo tempo da sociedade capitalista.
Os velhos do candomblé falam do passado como um tempo perdido, que já não se repete, vencido por um presente em que impera a pressa, o gosto pela novidade, a falta de respeito para com as caras tradições e, sobretudo, o descaso para com os mais velhos. Dizem que “o candomblé hoje vive de comércio, é pura exibição”, reclamam que “uns querem ser mais que os outros”, falam que “os que mal saíram das fraldas, que não sabem nada, já empinam a cabeça para os antigos”, lamentam que “os velhos babás e as velhas iás não tem mais voz em nada”, asseveram que “os jovens o que querem é sugar os seus mais velhos e depois chutar seu traseiro e buscar outro lugar onde podem mandar à vontade”. Falam com saudade daquele mundo ideal que ficou para trás e gostam sempre de frisar que “no meu tempo não era assim”, repetindo que “hoje ninguém mais tem humildade, querendo saber mais do que os antigos, essas crianças presunçosas, esses jovens cheios de vento”. Seu discurso triste revela certamente muito de nostalgia da juventude, mas é também o testemunho verdadeiro de perdas efetivas.
O presente agora se descortina como ruptura, descontinuidade. O passado não explica mais, nem se completa no presente. Os mitos vão sendo esquecidos, os odus simplificados, os deuses ganham ares mais condizentes com a modernidade. Os jovens acusam os mais velhos de levarem para o túmulo segredos iniciáticos que não transmitem para ninguém, enfraquecendo os mistérios da religião e sua força, o axé, mas de fato não se importam muito com isso. Acreditam menos na existência dos segredos do que os mais velhos diziam acreditar. Aprenderam que a tradição é e pode ser construída a cada instante, pois a lei-do-santo, que ordena as tradições do candomblé, não tem mais do que um século de vida, nem uma única versão, e está sempre mudando. E levam adiante sua religião, pensando no futuro.
Por Povo de Santo
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