Raul Lody
Instituto Nacional do Folclore - RJ
"Kakuvena kedule ongumana"
(Ter um machadinho é melhor que ter só as mãos)
Dito popular Cuanhama - Angola
Inegavelmente para o estudo e compreensão do homem afro-brasileiro, busca-se um entendimento mais completo e, diria, complexo do homem africano, homem este que se vincula aos seus modelos de ancestralidade e de deidade, que norteiam, na maioria das vezes, suas ações de vida e de civilização. Tudo isso reitera a grande preocupação do afro-brasileiro em relacionar e representar, materialmente, seus deuses, com o intuito preciso de manter nos objetos os elementos estéticos que se aproximem de um modelo geral africano, ou que comportem signos visuais de uma abrangente africanidade. As maneiras de representação, as técnicas artesanais empregadas, os níveis de conhecimento, não apenas das formas, mas também dos implementos reveladores das presenças das divindades, assumem particularidades, pois as marcas míticas têm a função de estabelecer relações de poder e de conhecimento religioso. Assim, a ação do fazer deve acompanhar uma trajetória onde a diversa produção material assume um momento de alimentação dos terreiros, situando o objeto religioso como o elo necessário para a relação homem e seu deus, ou do estabelecimento fundamental específico do deus em seu assento ritual no interior dos santuários.
Buscam-se, neste ensaio, algumas abordagens sobre as propostas do fazer, do dominar tecnologias, do comercializar objetos de culto, do saber pela tradição e do saber pela massificação da cultura. Para melhor relacionar essas abordagens, escolhi como espaços de estudo as cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Recife. Estes locais, pela vertente formal do Candomblé e suas ramificações litúrgicas de profícua subjetividade, exercida por parte dos dirigentes, dos adeptos dos terreiros e também daqueles que fornecem os implementos necessários aos momentos dos cultos, os artesãos elou comerciantes de artigos religiosos afro-brasileiro depõem' sobre a memória e sobre a dinâmica da religião. Na verdade, os inumeráveis objetos que integram o elenco de pecas que têm desempenhos especiais para as cerimônias nos terreiros assumem reconhecimento visual pelo tipo de matéria-prima transformada, emprego de cores, texturas e formas, pois decodificados os objetos por seus leitores, implicando no conhecimento dos momentos religiosos, a ocupação simbólica dos objetos estará integrada no amplo conjunto também simbólico dos outros objetos religiosos já em uso no terreiro. Assim, com o intuito de estabelecer uma análise de um objeto da cultura material afro-brasileira ao nível de exemplaridade, foi escolhido o Oxê, objeto de franca ocorrência nos terreiros de Candomblés e de Xangô. Oxê é o machado de duas lâminas, machado de dois gumes, de dois gomos, ferramenta de propriedade de Xangô. Ora os machados são em madeira, ora em folha-de-flandres, cobre ou latão, assumindo todos os mesmos significados. Xangô trabalha ou funciona com o seu machado, posicionando seu papel de mito-herói, revelando sua justiça, sabedoria em dominar o fogo, entre outros títulos que comporta seu caráter impetuoso, temperamental e fogoso. Lê-se, também, Xangô como um personagem histórico, tendo sido o terceiro rei de Oió, Nigéria, África; no entanto, marca para todos a imagem do rei mítico, aquele casado com Oiá, Oxum e Obá. No Brasil, é Xangô popularmente aceito por parte dos adeptos dos terreiros que dedicam grande predileção pela divindade, determinando, inclusive, o titulo Xangô para nominar forma de culto afro-brasileiro no Nordeste, precisamente no Estado de Pernambuco, onde os terreiros são chamados de Xangô, Casa de Xangô, servindo também para reforçar no Recife a essência tradicional dos maracatus africanos, conhecidos como Maracatus de Xangô ou de Baque
Virado.
Virtualmente, Xangô é um deus que assume o signo do poder, não apenas o viril, como o hierárquico. Essas imagens nutrem seu papel divinizado no interior dos santuários e projetam uma personalidade pública, extramuros das comunidades religiosas, como um "Santo poderoso", "temido", "Xangô é difícil de agradar", como dizem os adeptos ou simpatizantes dos terreiros.
O conhecimento imediato de Xangô ou das coisas de Xangô tem no Oxê importante referência, determinando o domínio e a ação do deus.
Os trabalhos artesanais dos chamados ferramenteiros de Santo, artesãos que se dedicam a construir objetos para o uso do deus, têm no Oxê uma peça muito conhecida e amplamente utilizada, sendo um implemento de obrigatória presença em todos os terreiros, inclusive naqueles que não há iniciados de Xangô, que têm por obrigacão possuir o chamado Xangô de casa, não deixando de ser inclusive um deus tutelar para o terreiro.
O machado neolítico, signo primeiro de Xangô, determina seu tempo histórico, numa idade em que os domínios de certas técnicas não eram conhecidas. No caso de Ogum, outro deus de cunho, civilizador, justifica a inclusão dos metais, notadamente o bronze e o ferro, surgindo então novos objetos, substituindo o facão de madeira pelo de ferro, ampliação das ferramentas agrícolas, outros adornos de corpo e utensílios diversos
do cotidiano ou de função episódica.
O Oxê é marca geral do afro-brasileiro, havendo a predileção do cobre como o melhor material para construir esta ferramenta, como também para os demais objetos votivos de Xangô, tais como capacetes, coroas, braceletes, pulseiras, couraças e outros implementos que compõe os trajes e os assentos do deus em seus pejis. No entanto, a madeira é material de cunho tradicional da imagem do Oxê, como de outros objetos importantes como o pilão e a gamela, situando-se em especial o Oxê antropomórfico,
aquele de maior evidência para o reconhecimento integral de Xangô. Inicialmente a pedra, em seguida a madeira e, por último, o metal, assim constata-se uma verdadeira evolução do tempo histórico, tendo se como referências os domínios das técnicas e, consequentemente, das soluções formais dos objetos, no caso o Oxê, que sempre manteve sua unidade visual, ou seja, o cabo alongado e a lâmina dupla do machado. Dessa maneira, entende-se a evolução, ao mesmo tempo, a fixação de três momentos no discurso mitológico de Xangô, que ocupa uma fundamental relação com os cultos litolátricos, referendando também a zoólatra que em muitos Oxês em madeira evidenciam soluções estéticas de machados comportando o carneiro, a serpente ou o pássaro, isso numa produção africana, notadamente na Nigéria. Ampliam-se esses conhecimentos sobre morfologia do Oxê com as concepções deste objeto religioso na contemporaneidade do artesanato afro-brasileiro, quando as pecas vão recebendo despojamento e têm na síntese formal uma saída de técnica, e ao mesmo tempo comportando simplificação estética, talvez pelo desconhecimento ou mesmo pela necessária criação e inventiva dos próprios artesãos.
Ainda no caso dos machados antropomórficos em madeira, destacam se alguns exemplos que servem de testemunho do trabalho do africano no Brasil ou de seus descendentes. Assim são caracterizados os Oxês que mantêm os detalhamentos dos sulcos sobre a madeira, tais como os lanhos no rosto das figuras, determinando as marcas étnicas, o fogo, a chama entalhada nas asas do machado, os seios proeminentes, os lábios e os olhos destacados da imagem, tudo revelando o impulso da cultura e de sua vivificação na feitura dos objetos, no caso o Oxê de Xangô. Como exemplos dessa produção destacam-se Oxês antropomórficos que compõem a Coleção Perseverança, hoje sob guarda do Instituto Histórico de Alagoas, ainda em alguns pejis na cidade do Salvador, como no Recife são encontrados alguns machados também antropomórficos, que são mantidos com todo o rigor e preceito, ocupando o espaço de importantes objetos que carregam a memória africana, propiciando uma maior proximidade com Xangô, que através do tempo é alimentado com o sangue dos sacrifícios sobre suas pedras, mas principalmente sobre seu Oxê.
No artesanato, hoje, de feitura de ferramentas de santo, o Oxê é peça que recebe muitas interpretações, mantendo, no entanto, sempre o cabo alongado do machado e as duas lâminas, podendo ser feito em cobre, latão, folha-de-flandres ou mesmo em madeira. No Mercado São José, Recife, Pernambuco, existem barracas dedicadas i venda de ervas, ferro para assentamentos e os Oxês são também comercializados, assim ocorrendo machados em folha-de-flandres pintados em vermelho e branco, ou apenas na folha-de-flandres, recortada e soldada, observando-se em várias visitas por mim realizadas, alguns machados em madeira, possuindo base, tendo os gomos duplos mais curvos que as convencionais asas retas, porque o Oxê de Xangô é, inclusive, conhecido como machado de asas. Nota-se, nesse último exemplo, que o machado foi feito para o peji, diferenciando
dos demais que ocupam os rituais públicos, quando das danças vibrantes de Xangô ao som do alujá, como nas casas ketu.
O domínio das técnicas, o conhecimento do mister artesanal permite ao artesão ocupar hierarquias estabelecidas, pois é aquele que sabe trabalhar com os materiais e construir as ferramentas dos santos. Fazer objetos para os santos e uma coisa séria, isso determina a ética do artesão que ocupa um lugar na família de santo, possuindo um cargo no poder do terreiro. Preparar utensílios religiosos é um verdadeiro sacerdócio, não é apenas o fazer, mas conscientemente fazer, cumprir os preceitos para poder fazer certo, como dita o costume, como exige a tradição religiosa. Assim, sempre o machado de Xangô tem de possuir dois gomos, tanto para o assento ritual como para danças públicas.
Extra comunidades religiosas ou fora das casas ortodoxas, fluem no comércio geral, predominantemente nos centros urbanos, os objetos de culto afro-brasileiro direcionando, inclusive, uma nova estética para os terreiros emergentes, em sua maioria distanciados dos vínculos da memória africana, evidenciando na realidade e resultado do contemporâneo afro-brasileiríssimo. Assim, o artesanato voltado a clientela dos terreiros
assume, hoje, um distanciamento do modelo tradicional. Busca-se, cada vez mais, simplificar os objetos do culto? A estética é dinâmica, na medida em que os padrões socioeconômicos também determinam as soluções ou agem sobre elas? São aspectos que têm de ser observados, pela natural importância que assumem para os cultos afro-brasileiros desenvolvidos nos grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo, o modelo tradicional poderá ter na realimentação pela leitura de um livro, revista, pela viagem deda comunidade do terreiro à África, resultando na devolução e ou modificação da dinâmica estrutural do terreiro, implicando, inclusive, nas liturgias. Avaliar isso, como? Os instrumentos da memória remota, na África, doam, motivam uma estética com evoluções visuais peculiares, quando a memória próxima, a afro-brasileira, tem seus próprios resultados culturais, agindo nas novas realidades, nas especificidades de cada terreiro, no estilo de cada lalaxé, rio conduzir de cada Zelador de Inquice. Fluem, nutrem-se todos esses componentes na manutenção regular dos terreiros. Constata-se, também, que as casas de Xangô do Recife, em sua maioria, candomblérizaram-se segundo um modelo baiano via comunicação de massa. No entanto, não se descartam as relações interterreiros, ou dos intercâmbios de famosos pais e mães-de-santo que se visitavam,
exemplo disso foi Pai Adão, conhecido pai-de-santo do Recife, que muito se relacionou com Martiniano do Bonfim, na cidade do Salvador, Bahia. No Rio de Janeiro, por exemplo, é evidente a desumanização, ou seja, a perda constante da identidade da umbanda urbana, dando espaço para o Candomblé, preferencialmente pela mitologia dos orixás e pela impressão de uma estética africanizada, gerando um novo modelo de culto, chamado pelos próprios adeptos como Umbandomblé. Não se pode negar que todos esses fenômenos têm na cultura material, por intermédio dos objetos religiosos, maneira de estabelecer seus fundamentos de organização, de poder e de interpretação cultural. Não se estranha, porém, que começam a aparecer, no comércio de objetos religiosos afro-brasileiros no Rio de Janeiro, ferramentas de santo tendo como matéria-prima o meta-lóide, substituindo, por exemplo, o cobre ou o latão para a feitura dos Oxês de Xangô.
Todos esses momentos de transformação, de buscas de novas soluções têm sempre uma preocupação geral que é a da identificação simbólica do objeto religioso. Essa identificação é marcada, cada vez mais, pela síntese formal do objeto, mantendo seus elementos principais, de modo que o reconhecimento ocorra e que a ocupação ritual aconteça.
Com a escolha do tema Oxê de Xangô como exemplo, temos um primeiro impulso para estudos complexos dos atos de fazer, das ideologias religiosas, dos componentes étnicos, dos sistemas de poder dos sacerdotes, da função do artesão ou do sacerdote-artesão, num relato que se compromete com a função contemporânea o negro na sociedade brasileira.
FONTES DE APOIO AO TEXTO
1. Bibliografia
BARRINDER, GEOFFREY African Mythology London, Paul Hamlyn, 1965
BEIER. ULLI Yotuba Mythes London, Cambridge University Press,1980
LODY, RAUL Símbolos Mágicos na Arte do Metal Rio, Arsgráfica Editora,1974
Artesanato Religioso Afro-Brasileiro Rio, Gráfica IBAM,1980
2. Pesquisas de campo realizadas em comunidades religiosas, nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, onde foram estudados terreiros das nações Queto, Angola-Congo e Jeje.
OSHE XANGO (Shango's axe)
A study about the metal or wooden double-axe or oshe which ís
sacred to Shango, the thunder deity of both the Yoruba traditional religion
an the A fro-Brazilian religious communities.
lt is a comparative analysis concerníng the evolution in the selection
of the material so far employed in its manufacturing as well as its symbolic
and ritualistic usage among some A fro-Brazilian religious comunities
in Rio de Janeiro, the cities os Salvador (Bahia) and Recife (Pernambuco),
Brazil.
OSHE DE SHANGO
Une étude au sujet de Ia double-hache de métal ou de bois, symbole
sacre de Shango, Ia divinité du tonnerre de Ia religion traditionnelle yoruba
et des communautés religieuses afro-brásiliennes.
20
C'est une analyses cornparatiw au sujet de l'évolution dans le choix
des matériaux employés pour sa fabrication et également sur ses usages
Ntuels et symboliques au sein des communautés religieuses de Rio de Janeiro
et des villes de Salvador (Bahia) et Recife (Pernarnbuco), Brazil.
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