Vilson Caetano de Sousa Júnior1
PUC-SP
Trabalho apresentado no seminário temático ST03 "Os
afro-brasileiros".
VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina
São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998
A comida
e o comer ocupam um lugar fundamental na vida dos terreiros de Candomblé. Isso
aparece explicado de várias formas, através de uma visão muito ampla, onde ela
é entendida como força vital, energia, princípio criativo e doador de algo. Na
comida, encontra-se a energia máxima de uma oferta,
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Vilson
Caetano de Sousa Júnior é Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e Doutorando
pela mesma Universidade. Título da Dissertação : Usos e Abusos das Mulheres de
Saia e do Povo do Azeite: Notas sobre as comidas de Orixás no terreiro de
candomblé. Membro do Grupo ATABAQUE, Cultura Negra e Teologia e Coordenador do
AGBARA- Grupo Ecumênico de Leitura da Bíblia a partir dos Afro Americanos e Caribenhos.
Outros títulos publicados: Evangelização e Diálogo junto às comunidades
afro-americanas e caribenhas. in: Mandrágora. Ano 3- nº 3. São Bernardo do
Campo, São Paulo, 1996. Em Defesa da Palavra In: Revista Mosaicos da Bíblia,
17. p. 5-10. Rio de Janeiro, 1995. Para que a comida não se estrague. Revista
Mosaicos da Bíblia, 15. Rio de Janeiro, 1994. Celebrando a vida com os Orixás.
In: Revista Sem Fronteiras. Número Especial. Julho. p. 13-16, 1994.
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mas,
acima de tudo, ela é a força que fortifica os ancestrais, então, é um meio, um
veículo através do qual, grupos humanos e civilizações, se sustentaram durante
milênios fazendo contrato com o Sagrado.
No
terreiro, a chamada comida de Orixá obedece a prescrições complexas construídas
ao longo do tempo e redefinidas a cada momento, de acordo com a função que deva
desempenhar ou à “realidade” que deseje instaurar ou dialogar. Tudo isso é
expresso nas múltiplas formas, maneiras e diferentes modos de preparar, fazer
ou de “tratar” os ingredientes.
Comida é
sacrifício, ebó2 no seu sentido mais amplo, mola propulsora que conduz e leva o
Axé3. Daí sua íntima relação com Exu, aquele que come tudo, encarregado de sua
distribuição no mundo. O sacrifício é, asssim, indispensável para viver, pois
nada se sustenta sem esta troca de força, de energia, sem essa reposição, num
universo onde tudo é dinâmico e nada acontece por acaso. Onde até uma folha que
se desprende da árvore tem um por que preciso.
Através
da comida oferecida aos Orixás, se estabelecem relações entre o devoto, a
comunidade e o Orixá. É sobretudo nas festas que isso mais se expressa. Festas
que se desenrolam ocultamente aos olhos dos de fora, que podem levar meses e
festas que são feitas para os de fora, realizadas no barracão, tornadas
públicas, onde, em algumas delas, são exibidas a maior quantidade possível de
comidas servidas aos Orixás da casa, e eles próprios servem a sua comida,
distribuindo, assim, aos presentes a sua força máxima.
Por traz
de cada prato ofertado há uma visão de mundo, um porque, que faz com que o
comer instaure um sistema de prestações e de contraprestações que englobam a
totalidade da vida. Comida é sempre um contra presente.
A comida
de Orixá difere, assim, das comidas servidas no dia a dia do terreiro, bem como
daquelas passadas no corpo das pessoas, usadas para “descarregar”, limpar,
livrar de algum contra-axé4.
Em linhas
gerais, comida é tudo que se come. Desde à pimenta e o obi5 que se masca para
conversar com o Orixá, ao naco de carne oferecido a este mesmo Orixá,
partilhado pela pessoas. Nesse processo de diferenciação, em que os
ingredientes, na sua grande maioria, são os mesmos, muda-se a forma de
ritualizar, a elaboração, o cuidado, “o tratamento”, a maneira de lidar com o
mesmo ingrediente, o sentido impresso e invocado através das palavras de
encantamento, cantigas e rezas.
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2 ebó-
oferenda
3 Axé-
princípio gerador de vida
4
contra-axé : tudo que não gera vida dentro da comunidade
5 obi-
também chamado de noz de cola é uma espécie de semente usada nos rituais para
conversar com o Orixá.
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Assim,
falar sobre esta comida, suas relações, circunscrevê-la dentro de um espaço,
momento, consiste num dos nossos principais desafios. Enfrentá-lo, é o que
tentamos fazer sob o título: A Cozinha, os Orixás e os truques: entre a
invenção e recriação onde o tempo não pára...
“Candomblé
mesmo é cozinha...”
Dentro do
universo do Candomblé, a cozinha merece uma atenção especial, por ser um dos
espaços onde se passa e se constitui o sagrado. Tudo nela remete a esta
dimensão. Assim, “A cozinha de santo” aparece sempre como algo distinto,
separado da cozinha do dia a dia. Separada na sua grande maioria, não por
limites externos, mas internos que são representados por mudanças de atitude,
ações, formas de uso, etc.
Em muitos
terreiros de Candomblé, o local onde são preparadas as comidas dos Orixás é o
mesmo onde são feitas as comidas do dia a dia. Esta separação, todavia é
realizada de forma bastante visível e determinada. Muitas vezes se reserva para
as comidas de santo um fogão especial que pode ser de lenha ou industrial,
enquanto a outra permanece num fogão menor. Comum é se trocar de horários. É
muito difícil se mexer com as panelas dos Orixás ao lado de outras panelas, bem
como misturar os utensílios destas duas cozinhas.
“ Cozinha
do santo” é, assim, mais que um lugar determinado que, em terreiros de
estrutura maior, os mais antigos, se tem para preparar somente os pratos dos
Orixás e, sim, um espaço criado e redefinido a cada momento, no terreiro,
através da separação dos objetos, utensílios e mudanças de comportamento. Tudo
participa do sagrado: o espaço em si , as panelas, travessas, pratos, bacias,
cestos, peneiras, colheres de pau, ralos, o pilão, as frigideiras, formas de
assar e sobretudo as pessoas que nele transitam.
A cozinha é cheia de interdições como: não
conversar mais que o necessário, não falar alto, gritar, cantar ou dançar
músicas que não sejam do santo; não entrar pessoas que não sejam
iniciadas-dependendo do que se estiver fazendo, somente um número muito
restrito-não admitir que mulheres menstruadas permaneçam nela, etc. Neste
espaço sacralizado, tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a
faca, a colher, o óleo que faz fumaçar o fogo, etc. Na cozinha se aprende além
do “ponto” certo de determinado prato, que não se dá as costas para o fogo, não
se joga sal no chão, não se mexe comida de Orixá com colher que não seja de
pau, que a comida mexida por duas pessoas desanda, que não se joga água no fogo
e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida desandar. Ou que a
presença de pessoas de um determinado Orixá faz com que uma certacomida
não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho
de pipoca queima antes de estourar. Pela cozinha, entram as pessoas de maior
prestígio na Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito antes
mesmo de se chegar no peji do Orixá, que este é consultado a fim de se saber se
a comida foi bem preparada ou não.
Embora
marcada por vários limites, a cozinha é mesmo escola mestra, local onde se
aprende as lições mais antigas, através do exercício longo e paciente da
observação. Local onde permanecem por maior período de tempo os iniciados, seja
varrendo, lavando, limpando, guardando, acendendo ou mantendo o fogo, cozinhando,
com olhos e ouvidos atentos a tudo que se passa nela. Daí entende-se o dizer
corrente: Candomblé mesmo é cozinha!!!” Talvez por ser ela mais que um local de
transformação e sim de passagem e transmissão de conhecimento, por onde
transita algo essencial que ultrapassa os limites das oposições por situar-se
no mais intimo e profundo ser do homem: o comer.
Jé: o
verbo comer
Muito
mais que relacionada a um sistema nutricional, a comida se articula e se
compreende a partir de um universo maior onde a oralidade constitui um dos
meios mais expressivos de passar seus preceitos, a observação um método
indispensável para sua manutenção e o comer um dos verbos, que embora muitos
conjuguem, reserva-se a poucos, restringindo-se àqueles que conhecendo o
“tratamento” entendem o papel e significado desta comida como Axé, força vital
e sacrifício indispensável para a conservação da vida.
A comida
de Orixá articula-se num universo que estabelece diferenças e “oposições”. As
primeiras dizem respeito ao que se come, ao que não se come e ao não comer; ou
ainda, ao como se come e com quem . As oposições são formuladas, quanto à
origem, em comidas secas e comidas de ejé. As comidas secas são também chamadas
de comidas frias. São todas aquelas não provindas do sacrifício animal, ou as
que são à base de grãos, raízes, folhas e frutas. Por sua vez, uma outra
oposição relacionada ao quente e ao frio surge tomando como referência o
azeite-de-dendê e a pimenta ao lado de outros ingredientes.
Outra
maneira de formular as “oposições”, diz respeito à passagem mítica da vida de
cada Orixá. Assim, há os que comem com pressa, aos que recebem comidas sem
forma, amassadas e aqueles que gostam de comidas mais detalhadas. Isso explica
a diversidade de iguarias numa cozinha em que há os que comem cru, mal passado,
torrado, frito, cozido e amassado.
Dentro
desse universo, o azeite-de-dendê ao lado da folha de banana, cumprem uma
função fundamental. Dendê é força, origem. Seu óleo está associado ao esplendor
de algumas civilizações ou, ainda, à criação. A bananeira, por sua vez, liga-se
ao crescimento e à transformação. Ela é a cama, sobre a qual, tudo
que
repousa, se deita sobre ela . E tudo que se enrola é envolto nas suas folhas
verdes ou secas e amarrado com suas próprias fibras.
Vale ainda chamarmos a atenção, que, quando se
fala da comida de Orixá, associada à uma “cozinha africana”, esta é entendida
como um conjunto detécnicas,
formas e maneiras de preparar, trazidas pelas diversas etnias africanas, que
aqui foram conservadas e reelaboradas, ao lado de outras inventadas. Assim,
também, a cozinha dos Orixás. Não se trata de voltar à África, mas fazer com
que tal cozinha se torne africana. Africana no sentido de expressar, trazer
presente, experiências longínquas de reinos, civilizações, histórias de grupos,
somadas a tantas outras. A comida de Orixá é, assim, uma “comida brasileira” em
que tantos motivos afros se fazem presentes. Ao mesmo tempo, é uma “comida
africana”, onde inúmeras experiências do Novo Mundo foram acrescentadas a ela.
Na cozinha dos Orixás, ao lado das continuações, temos recriações e invenções
feitas a todo o momento. O que faz a comida de Orixá é um ritual profundamente
complexo, elaborado e articulado segundo códigos e princípios, alguns deles de
“porque” perdido no tempo. Daí entender-se, mais uma vez, a frase que diz: “Tem
gente que pensa que é só comida.”
A
sacerdotisa da comida
O segredo
desta culinária é comandado pela guardiã da cozinha, a Yabassê. Aquela que
“muito faz e pouco fala.” Quando se fala da sacerdotisa da comida, as formas
mais antigas de transmissão do conhecimento trazida pelas diversas etnias
africanas vão ser evocadas: a observação e a convivência. E o mestre dos
mestres será mais uma vez chamado: o tempo. O conhecimento ritual, o respeito,
a criatividade e o comando apresentam-se como o perfil da Yabassê e orientam à
sua escolha, mesmo que, hoje, nos “novos tempos,” poucas sejam as mulheres que
se disponham a tal cargo; não pelo gosto, mas pelas funções assumidas por elas
na sociedade.
A imagem
da Yabassê apresentada pelos sacerdotes, remonta aos primórdios, quando
Olodumaré, Deus, entregou o poder de criar e de tudo transformar às Grandes
Mães. A velha que cozinha, divide, assim com o poder ancestral feminino esta
força, assim como todas as mulheres. Daí recair sobre ela o tabu da impureza,
que reflete as relações de poder, as tensões entre homem e mulher expressas em
alguns mitos da sociedade yorubá, num ambiente onde embora sua função seja de
procriar, ela goza de plena liberdade e independência dentro do grupo. Permitir
que a mulher menstruada manipule a comida é expor toda a comunidade ao poder
das Mães Ancestrais, que serve tanto para o bem, quanto para o mal. A Yabassê
é, uma das pessoas que no terreiro, mais expressa essa força, pois trabalha com
ela dia e noite, ao manipular a colher de pau para
transformar grãos e alimentar tudo e todos, conservando, recriando e
inventando.
Os Orixás
e suas comidas
Para o povo de santo, falar sobre as iguarias
oferecidas aos seus Orixás não é o mesmo que informar sobre o cardápio de um
dia de festa. Dizer as coisas que o santo come é quase como revelar um segredo,
um espaço de foro íntimo de cada terreiro. A ausência de muitos pratos, a
presença destes sem nomes, silêncios, lapsos de memória, muitas vezes, antes de
ilustrarem um desconhecimento, constituem parte de um saber,
muito especial, guardado pelos mais antigos nareligião,
a que só poucos tem acesso. Bastante impressionante o que certa vez ouvi de uma
Yalorixá: “a Yabassê é aquela que muito faz e pouco fala”.
O não
falar insere-se no contexto onde a oralidade constitui um dos veículos mais
fortes de transmissão do conhecimento, os chamados segredos, fuxicos de santo,
ensinamentos rituais, fundamentais, na sua grande maioria balbuciados no ouvido
do iniciado, ou passado em palavras incompreensíveis, ou fórmulas incompletas.
As
comidas oferecidas no terreiro aparecem sempre como algo particular, pertinente
àquela casa. Receitas pela metade, pratos sem nomes, queixas e justificativas
somam-se, ao lado de recriações, a todo instante, no fogão dominado pela
Yabassê.
Da
África, os Orixás vieram de diferentes lugares, antigos reinos africanos,
muitos deles inimigos. Diferentemente das suas regiões de origem, o culto dos
Orixás no Brasil, antes de estar ligado à uma família, uma confraria, foi
ampliado e praticado num mesmo espaço. Destruída a família clânica, extensa,
sua noção vai ser reconstruída no solo brasileiro como uma grande família
teológica, chamada família de santo.
No
Brasil, esse universo teológico foi perpetuado, mas também reinterpretado.
Muitos Orixás não poderam mais ser cultuados, outros se transformaram na vinda
para o Novo Mundo. Assim como outrora na África, muitos deles trocaram de nome,
mudaram de região ou até mesmo cairam no esquecimento, por conta de migrações,
ou de guerras que obrigavam o grupo a peregrinar de um canto a outro. Não
levavam seus rios, mas objetos sagrados em torno dos quais reorganizavam o
culto de seu orixá.
Dos
diversos Orixás introduzidos no Brasil, dezesseis são os mais conhecidos e
cultuados pela maioria dos terreiros, embora se saiba que este número é também
simbólico.
[...]
Uma
cozinha africana?
Já no seu
tempo, Nina Rodrigues, ao finalizar o capítulo sobre algumas nações africanas
no trabalho sobre “ Os Africanos no Brasil ” , ao referir-se à arte culinária e
à marcante presença de hábitos africanos, sobretudo na Bahia, chama a atenção
para o fato de que é difícil precisar, devido ao estado atual dos costumes, a
quais grupos pertenceriam determinada comida. Salvo o famoso arroz de haussá
que, de acordo com a sua designação, expressaria sua origem, levando-se a crer
que , se não toda a culinária, a maioria dos pratos deveria ter provindos dos
negros sudaneses.6
Manuel
Querino é um dos poucos autores que assinalam a contribuição dos grupos banto
ao lado dos minas, à culinária chamada de africana, contrariando a tese
daqueles que insistem na predominância eminentemente nagô nesta cozinha. Diz
Querino: “ Entre as mais peritas na arte culinária destacavam-se angola, jeje e
congo...” 7
Nos terreiros, esta cozinha, marcada por uma
série de preceitos e interdições, vai aparecer relacionada diretamente aos Orixás
através das chamadas “comidas desanto”.
Assim, cada Ancestral recebe em dias especiais pratos de sua preferência. Não
se trata porém só de comer: o que se come, o que não se
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6 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 7a Ed.
São Paulo, Nacional; Brasília, Editora da Universidade de Brasília. 1988.pág.
120.
come,
quando se come, com quem, participam de um todo integrado que diz respeito à
códigos imprescindíveis dentro do “cardápio dos Orixás”. E mais ainda, esta
comida dentro da dinâmica do terreiro é um dos veículos de vital importância
para a transmissão e distribuição do Axé. Cabe, então, buscar responder a duas
questões: a primeira diz respeito ao que faz com que esta cozinha seja
“africana” e depois, o que faz com que a comida seja comida de santo.
Seja a
“comida de santo” reelaborada a partir de técnicas e maneiras de predominância
banto, jeje ou nagô-yorubá, fato é que, desde cedo, alguns africanos e
africanas foram aproveitados para o serviço culinário, produzindo, desde então,
modificações nas refeições à moda do Reino.8
Outro
fator que deve ser considerado é a falta de mantimentos num país, desde os seus
começos, assolado pela fome. Da nova terra, o português, ao lado das caças e
muitos frutos, só pode aproveitar a mandioca e o milho, mantimentos básicos que
sustentavam seus habitantes.
Situações
diferentes, viviam os africanos da cidade. Sobre a escravaria urbana, somente
nos últimos anos começaram a ser realizados estudos mais elaborados e
profundos. Segundo Edison Carneiro, o aparecimento do negro doméstico ( negro
de aluguel e de ganho) estava eminentemente relacionado com o momento econômico
em que os africanos passaram a exercer trabalhos de confiança, em que eram escolhidas
as mulheres mais bonitas e os homens mais sociáveis para vender nas ruas.9 Isso
teria ocorrido no século XVIII, sobretudo no Nordeste. Carneiro, todavia, não
desconhece que os africanos, desde cedo, ocuparam as cozinhas, e nelas
introduziram, como puderam, seus modos e aos poucos foram modificando o que se
comia .
Os ingredientes africanos ou vindos da África
como o quiabo, a vinagreira, o inhame, a erva doce, o gengibre, o gergelim, os
bredos, o amendoim, as melancias, o azeite-de-dendê e outros, foram entrando
aos poucos no Brasil de acordo com as exigências do tráfico ou da população que
aqui se estabelecia, como por exemplo, o óleo de palma importado da costa da
Mina, trazido através de passaporte, após decretada a ilegalidade do tráfico a
partir do século XVIII. Não é possível, no entanto, se pensar nesta cozinha e
nem em nenhuma outra somente a partir de tais elementos. Ela é mais do que um
conjunto de materiais naturais que podem ser adaptados ou substituídos. A
própria adaptação e substituição obedece a uma certa ordem inscrita nos mais
remotos tempos, fazendo com que a comida não perca seu sentido nem se afaste da
visão de mundo que ela representa. O que dá identidade a determinada comida não
é a origem dos vários ingredientes combinados, mas a maneira como estes
elementos são combinados. E estas maneiras obedecem a determinados ritos que
lhes dão sentido e, como tais, apresentam-se como algo criativo. Assim, é
completamentearbitrário
buscar precisar datas para essa culinária, entendendo esta como algo parado,
fechado, se o próprio tempo se incumbiu de dinamizá-la.
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7
QUERINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Recife, FJB- Massangana. 1988.
pág. 60.
8 Idem.
Neste
trabalho dinamizado pelo tempo, é essencial chamar a atenção para um fato de
que poucos se deram conta, além do etnólogo Pierre Verger: a participação do
Oceano como um fator de ligação, mais que de separação.10 Não se pode esquecer
que por ele, vieram várias permutas alimentares trazidas pelos europeus para o
Novo Mundo, entraram muitos elementos africanos que voltaram abrasileirados de
uma Nação onde o elemento negro era os pés e as mãos, parafraseando Antonil, e
mais ainda, onde era quase que impossível após três séculos de convivência não
impregnarem a sociedade com profundas marcas.
Era
impossível, diante dos novos quadros sócio- culturais, políticos e econômicos,
que estes modos de fazer, técnicas e maneiras das diversas etnias africanas,
não fossem visivelmente sentidas, ao lado de tantos outros. Bem como não terem
incorporados outros elementos da sociedade que estavam inseridas.
As
condições de possibilidade para se pensar uma “ cozinha africana” não podem ser
pensadas a nível cronológico, assim como não pode prescindir desse tempo. Elas
vão acontecendo, se dando, de acordo com o tipo de situação servil ou livre e o
lugar em que vivia o africano, variando, desde o primeiro momento em que
dividiu a cozinha com a cunhã, até quando pode, ante às novas condições suscitadas
pelo processo histórico, negociar com um tabuleiro. Certamente será, sobretudo,
na cidade, a partir do século XVIII que estes usos e abusos mais poderão ser
sentidos, seja nas mesas ou nas ruas como mercadoria cantada.
“Cozinha
é lugar de truque”
Seja
fazendo o uso de ingredientes nacionais ou de outros vindos do além mar,
conservando, recriando ou inventando alguns pratos, a “africanidade” sugerida
pelos pratos que compõem “a cozinha de santo” não se explicam pelos
ingredientes que entram na sua composição, mas pelas técnicas, maneiras, pelo
tratamento recebido por eles. A Cozinha é um lugar de ritual. Bastide assinalou
muito bem isso:
“ A
cozinha não é feita unicamente por mãos peritas; a cozinheira nela põe, com
suas mãos, também o coração- como o diz- Isto é, seus complexos, traumatismos,
recalques e pensamentos secretos. Se ela não permite que estranhos penetrem no
local de seu trabalho, não é apenas por ser ele um santuário do qual ela é a
sacerdotisa, e a cozinha uma religião da qual ela celebra o ritual. É também
porque ela aí está inteiramente nua.” 11
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9
CARNEIRO, Edison. Ladinos e Crioulos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
1964. pág. 4.
10
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo. São Paulo, Corrupio. 1987. pág. 92.
11 O
Psicanalista na Cozinha. In: Cultura e Alimentação Rio de Janeiro, 2 (2) : 21 e
96, dez. 1951, pág. 21.
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Não se
trata de voltar à África, mas fazer com que a comida se faça “africana”, ou
seja, remonte a histórias e passagens, visões de mundo associadas aos
Ancestrais, princípios universais ou Antepassados, aos primórdios dos tempos
quando estes fundaram a humanidade, constituíram as cidades e criaram os
diferentes grupos. Visões de mundo juntadas à inúmeras outras experiências
históricas constituídas no Novo Mundo É este fazer, que faz com que tal comida
seja comida de santo.
A
invenção e a recriação, ao lado das continuações, não são feitas
aleatoriamente. Embora se liguem diretamente às circunstâncias múltiplas e
variadas de cada terreiro, inserem-se num universo mais amplo, ligado a um
passado expresso em determinados preceitos, códigos, explicações e silêncios
que regulam os porquês, os modos e as formas de se pôr à mesa.
A comida
de santo diferencia-se, assim, daquela, do dia a dia. Uma coisa é cozinhar o
inhame, cortá-lo em pedaços para o café. Outra é preparar este mesmo inhame
para Oxalá, quando variam desde o tamanho, e a forma das raízes, os
procedimentos observados para feitura de tal prato e por fim, as palavras ditas
para “encantar” a comida. Fazer um feijão de azeite não é o mesmo que preparar
um Omolocum. Enquanto, para se fazer o primeiro, somente se separa a sujeira, o
segundo exige que se escolha os grãos maiores, perfeitos. Nada pode escapar,
afinal, Oxun liga-se à fecundidade. Não é simplesmente fazer um caruru, cortar
os quiabos, acrescentar cebola, camarão e azeite de dendê. É cortar de
diferentes formas, ou como se diz: “de forma certa”, conversar com o quiabo, assim
por diante... Os Orixás comem comidas mais elaboradas.
Embora os
ingredientes sejam os mesmos, muda o tratamento que estes recebem. E a forma,
como estes são tratados expressa seu sentido através de um ritual onde nada é
por acaso. Assim, Exu pode comer de tudo, como outrora fez, segundo um de seus
mitos. Ogun pode receber a feijoada, uma vez que as carnes gordas lhe
pertencem. Ele também é um tropeiro. Bem como no dia de sua festa distribuir
pães de trigo numa sociedade onde este é o pão de cada dia . E Oxossi, por se
ligar à terra receber todos os frutos dados pelo Novo Mundo.
A
elaboração das comidas oferecidas aos Orixás segue um ritual diferente daquele
realizado no dia a dia para a feitura dos “mesmos pratos” que aparecem nos
cardápios e self-service. Certo que os Orixás comem, o que os homens comem,
porém, recebem à seus pés, nos terreiros, comidas onde os modos de preparar, ao
lado dos saberes: palavras de encantamentos ( Ofó), rezas ( Àdúrà), evocações
(Oriki) e cantigas (Orin) ligados às estórias sagradas ( itan) são elementos
essenciais e vitais para a transmissão do Axé.
No
terreiro, este ritual vai apresentar-se como algo criativo. As variações nos
modos de preparar determinada comida mostram que há uma constante busca de
legitimidade através da qual, as diferenças são constituídas.
As continuações, recriações e invenções na
comida de santo, orientam-se por um conjunto de saberes, técnicas e maneiras
ligadas a uma matriz cultural revisitada a todo tempo, articulada através de
sentimentos e da íntima relação com a Natureza, onde o Sagrado é elemento
constitutivo da vida da comunidade e acompanha as pessoas muito antes do seu
nascimento e depois de sua morte. Daí o abuso no uso dos mais variados grãos,
raízes, certos condimentos como a pimenta e o azeite-de-dendê e
da técnica de tudo enrolar na folha de banana mais a observância: de alguns
preceitos, da ordem seguida para preparar determinados pratos, de certas horas,
de como servir e quando.
Indagando
certa vez, sobre a importância da folha de banana dentro da culinária dos
Orixás, ouvi a seguinte explicação:
“ A
bananeira está ligada à Oxumarê, e ele que é macho e fêmea, liga-se ao
crescimento e ao desenvolvimento. Talvez seja por isso que a técnica de
embrulhar ns folha de banana apareça em muitos pratos. Eu não sei o certo. Por
sua vez, ela está associada à morte, ao processo de individualização de cada
ser. É isso!... É preciso que ela exista para que haja a vida, o crescimento e
a expansão da existência.”
Explicações
semelhantes vão ser dadas para cada prato. Talvez destes, só consigamos
visualizar os conteúdos que entram na sua composição, o que já fizeram muitos
autores, porém, apreender todo o sentido que estes encerram dentro de si, bem
como as visões de mundo que expressem, é tarefa quase que impossível. São elas,
todavia, que fundamentam as continuações, recriações e invenções na comida
servida pelos devotos aos Orixás, através de truques inseridos no tempo de uma
tradição dinâmica onde o não saber, o não ouvir e o não ver, cabem em qualquer
lugar.
E o tempo
não pára...
Nos
últimos anos, várias linhas de pensamento vem insistindo na mudança e
transformação desse patrimônio sócio, cultural, político e religioso face às
mudanças da sociedade. Se a suposição de um todo integrado no Candomblé
significa a criação de uma nova religião e uma ficção criada pelos cientistas
sociais, tão ilusória é, também, a suposição de que este complexo não existe,
ou ainda, que se orienta seguindo os rumos do progresso e caminha com os passos
da modernidade.
É
importante procurar perceber as formas através das quais, as comidas de Orixá
dialogam com essa sociedade racionalizada. Ou, ainda, buscar descrever e
acompanhar a utilização dos eletrodomésticos, para feitura de determinados
pratos, perguntando, como a comunidade utiliza isso. Ou seja, como se dá a
passagem dos métodos antigos para os novos, como, por exemplo, a substituição
de todo processo de feitura do akarajé, escolha, lavagem do feijão, etc. para o
simples preparo da massa que já vem industrializada.
Certa
ocasião presenciamos uma Yalorixá dizer que o Orixá de determinada pessoa
deveria se acostumar comer o akassá feito com a farinha de milho branco já
pronta, dispensando o método tradicional, mais demorado de preparar.
Certo que
na grande Metrópole, governada pelo relógio, pouco tempo se dispõe para cultuar
um Sagrado que exige muitas horas de dedicação e na qual, os Orixás comem o que
os homens comem. Deve-se perguntar, então, se certas adaptações e substituições
regem-se pela necessidade, portanto são um fato, ou se podem, simplesmente, ser
tomadas como condições para a sobrevivência desses Orixás na Metrópole.
Participei,
certa ocasião, da festa de Nanã. Ao contrário das comidas tradicionais
associadas à este Ancestral, havia somente frios, queijos e saladas. E Nanã não
deixou de dar a mesma volta ao redor daquelas comidas que daria na mesa de seus
mingaus. Parece que o surgimento de alguns pratos, ou ainda, de certas
concepções, não significa que os fundamentos foram diluídos no contexto da cidade,
mas ao contrário, que permanecem apoiados em suportes que não podem ser
ignorados. A suposição de um impacto das novas condições de vida sobre o papel
desempenhado pela religião dos Orixás deve ser mais uma pergunta do que um
pressuposto. Mais desafiadoras são as teias de comunicação, formas de diálogo
desenvolvidas pelos terreiros para marcarem sua presença e colocarem estes
produtos à serviço dos próprios Orixás.
É verdade
que o Candomblé não pode mais voltar à tribo, nem se prender à laços étnicos.
Todavia, não pode ignorar pressupostos reorganizados por homens e mulheres
profundamente conhecedores de sua cultura de origem . Embora não se possa
conservar, na maioria das vezes, por conta dos laços rompidos pela escravidão,
a idéia de ancestralidade, a memória do antepassado permanece viva nos
terreiros, até nos mais recentes, seja através de quadros, cadeiras, comidas,
ou passagens da sua vida. Vários trabalhos já insistiram sobre a importância da
idéia e do lugar ocupado pelo antepassado dentro do Candomblé. Assim, nomes
como o do Tio Bamboxé, Mãe Aninha, Tia Massi, Mãe Menininha, Sr. Manoel de
Neive Branca, Pai Bobó, Mãe Runhó, Nezinho do portão, Mãe Caetana Bamboxé e
tantas outros, evocados no Padê, junto a nomes de antepassados transportados do
além mar, constituem referências vivas de uma tradição que dialoga e se
expressa no tempo histórico.
A comida
de Orixá, os procedimentos rituais, encontram-se fundamentados nos ensinamentos
das pessoas que plantaram, fundaram, iniciaram, reorganizaram o culto dos
Orixás no Brasil. E que, certamente, não prescindiram do limite do seu tempo.
Enquanto
houver casas onde determinados procedimentos rituais de preparar as comidas
continuarem sendo feitos na sua forma mais arcaica possível, mesmo que em
alguns momentos, isso seja alterado,
utilizando
alguns aparelhos eletrodomésticos, é por que os “fundamentos” não foram
sucumbidos pelo processo de crescimento e mudança da cidade como alguns supõem.
Significa dizer, que os olhares otimistas que
privilegiam a mudança da Religião dos Orixás, face às transformações da cidade,
mais uma vez se enganaram, porque nem sempre o que se diz corresponde ao que se
faz. Os orikis, ofós, itãs, modos de fazer e determinadas explicações,
constituintes do segredo, são mais do que uma estratégia de sobrevivência do
grupo. Constituem uma linguagem que as teorias da sociedade moderna não
conseguiram ainda decifrar por assentar-se no não ver e não saber, nos truques
e “faz de conta” . É ela que continuará sendo o maior desafio não para os que apostam
no seu desaparecimento, mas para os que virão.
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