segunda-feira, 27 de junho de 2011

YORUBÁ - A TRADIÇÃO OGBONI-IFÁ

A Cosmogonia Yorubá 
                      Por Eliane Haas                     

Yorubá é um nome reservado aos povos de Oyó, que acabou por cobrir todas as etnias do mesmo tronco, hoje conhecidos como de fala yorubá.

O historiador Frobenius ( Mythologie de l’Atlantide) afirma ter redescoberto na terra dos yorubás ramificações do desaparecido continente da Atlântida. Segundo ele, os atlantes teriam cruzado o oceano infiltrando-se  na África. Já Samuel Johnson (The Story of the Yorubas) situa a origem dos yorubás no Egito Superior ou na Núbia. Estudos atuais sobre oKemet – como é conhecido o Egito antigo, vêm corroborar a teoria de ali situar a origem da religião yorubá.

Seja como for, elementos da prática religiosa yorubá comprovam ser das primeiras  praticadas na Terra e nos teriam sido legados pelos ancestrais instrutores espirituais do planeta.

Dentro da tradição yorubá ,  a estrutura universal é regida por uma Divindade Suprema, Olodumare / Olorun,  origem única e princípio de todos os mundos , que comanda e  zela pela sua evolução. Este Ser permeia todos os reinos da manifestação cósmica, desde as maiores galáxias até os ínfimos espaços inter-atômicos. Descrito como aterekaye  (aquele que cobre o mundo, fazendo todos sentirem a Sua presença) é o detentor do Poder Absoluto e Onipotente. Este conceito de supremacia absoluta e pràticamente  inconcebível de Olodumare já invalida a classificação de politeísta. Aliás, a reverência a Olodumare é tão absoluta que, a Êle não se erguem templos, não se idealiza a  imagem e tampouco se realizam, rotineiramente,  sacrifícios  ritualísticos. Contudo, cada um é livre para dirigir as suas orações e louvores ao Senhor Supremo do Universo.

Segundo a concepção yorubá , todo o processo de existência se desenvolve nos planos físico – o aiyê – e sobrenatural – o orun.

Tudo o que se manifesta no aiyê tem a sua pré-existencia no orun. Tudo o que existe no plano material possui o seu doble no Orun.

Axé 
Dentro desta tradição, a existência dinâmica se deve à manifestação de uma força que se denomina Axé. Sem Axé não haveria possibilidade de existência e realização, pois dele decorre todo o processo vital, como essência e forma. Tanto as divindades como toda entidade animada estão impregnadas de Axé.

Como força vital, Axé é plantado, cultivado, renovado e compartilhado. Como toda energia no Universo manifestado, Axé é gasto e renovado. Receber Axé significa incorporar as representações matérias e simbólicas que representam os princípios vitais de tudo que tem existência no aiyê como reflexo do orun.

Axé , como força, é neutro, mas detém qualidades e caraterísticas dos elementos que contém e veicula. Axé é a energia contida numa grande variedade de substâncias representativas dos reinos animal, vegetal e mineral, que se propõe movimentar.

Os elementos portadores de axé podem ser agrupados em três categorias, chamadas “sangues” – porque o sangue é o veículo energético por excelência:

Sangue vermelho
Sangue branco
Sangue negro

Todas as cores encontradas na natureza vinculam-se, em última instância, a uma das cores primordiais vermelha ( amarelo, laranja) ou negra (verde, azul, lilás, cinzento). O amarelo é, portanto, uma variedade do vermelho, como o azul e o verde são variações do negro.

O sangue vermelho compreende:
No reino animal – todo tipo de sangue, humano e animal
No reino vegetal – azeite de dendê, ossun (serragem de uma árvore), mel
No reino mineral – cobre, bronze, ouro

O sangue branco compreende:
No reino animal – o plasma do igbin (caracol), o sêmen, a saliva, o hálito, as secreções, o marfim, os ossos
No reino vegetal – a água, o álcool contido nas bebidas brancas, a manteiga de ori (gordura vegetal), o inhame
No reino mineral   - efun (tipo de calcário), sal, prata, chumbo,  conchas

O sangue negro compreende:
No reino animal – as cinzas dos animais
No reino vegetal – a terra, sementes, o sumo das folhas , o waji (pó vegetal)
No reino mineral – o carvão, o ferro, as pedras

Alguns lugares, objetos ou partes do corpo humano podem ser impregnados de axé:  a língua, o coração, as vísceras, os órgãos genitais, os dentes e ossos, assim como também as raízes, árvores, sementes, as pedras e cristais, os rios, o mar, as florestas e o fogo.

A prática da religião yorubá consiste em atuação através da manipulação dos axé branco, vermelho e negro.

Como dogma, baseia-se na fé numa Divindade Absoluta – Olodumare, na crença na existência e na sobrevivência da alma como sopro divino – emi, nas conseqüências das ações humanas – ewo, e na Lei moral ditada pela consciência de cada um, que permeia a vidacotidiana – ifa aya.


A criação do Planeta Terra 
Segundo os Itans (mitos), corpo da tradição oral  que norteia todas as crenças e procedimentos da religião yorubá, Olodumare convocou Obatalá / Orisa nla para elaborar o planeta Terra dentro da dimensão física.

“Durante a caminhada, Obatalá encontrou Exu, que indagou sobre oferendas que deveriam ser feitas para a consecução do trabalho. Obatalá não deu importância ao fato e, sedento, extrapolou no consumo de bebida alcoólica extraída da palmeira. Conseqüentemente, caiu em sono profundo e foi  suplantado por Oduduwa, que, tomando os elementos necessários, saiu para efetuar a tarefa da criação da Terra. O local onde o trabalho teve início denominou-se Ifé (aquilo que é amplo) . Segundo a tradição, daí proveio o nome da cidade sagrada de Ilê Ifé”.

Segundo a tradição de alguns clãs yorubás,  Oduduwa teria sido um herói proveniente de reinos do oriente que atravessou todo o Egito, chegando ao local onde viria a ser fundada a cidade de Ilê Ifé.

Ali encontrou a população local, os Igbo, cujo rei era Obatalá.  Logo encontrou oposição por parte de Oreluere, ancestral guardião, partidário de Obatalá. Esta oposição política à investida de Oduduwa fez nascer a Sociedade Secreta Ogboni, presevadora da justiça e dos ideais implantados ns primeiras instituições da Terra.

Em território yorubá há controvérsia sobre a figura de Oduduwa, visto tanto como divindade masculina, como feminina, associada à antiga tradição das deusas da fertilidade. A controvérsia de mitos disputando entre Obatalá e Oduduwa a criação da Terra revela dois momentos distintos que se complementam  na memória política da civilização yorubá. Por uma lado, o mito da criação do planeta Terra e por outro, a incursão de povos estrangeiros que ali se mesclaram.

Disto resultou que, embora rendam, fìsicamente, tributo à ancestralidade de Oduduwa reconhecem em Obatalá – já intitulado Orisa nla, o Grande Orisa – a divindade regente do planeta Terra.

Outros itans já trazem a seguinte versão sobre a criação da Terra:

“Munido de uma concha com terra, uma galinha e um pombo, Obatalá jogou a terra sobre a imensidão das águas que cobriam o planeta e, em seguida, enviou a galinha e o pombo para espalhar a terra. Tarefa cumprida, Obatalá informou a Olodumare, que enviou agemo, o camaleão, à fim de conferir o trabalho. Da primeira vez, agemo informou que a terra ainda não estava suficientemente seca para a missão pretendida. Na segunda inspeção, comunicou que tudo estava à contento”.

De toda forma, tendo sido privado de cumprir a missão de criar a Terra, tornando-a  habitável  no plano físico - ou complementando a obra da criação - Obatalá convocou Oreluere para trazer e fazer encarnar os seres que já aguardavam no Orun para concretizar a sua existência material.

Fato inconteste é que , por fim, Obatalá recebeu a incumbência de  criar as características físicas dos corpos que deveriam abrigar os habitantes humanos do planeta. Com barro e água, Obatalá confeccionou os corpos, aguardando que Olodumare complementasse com o emi – o sopro da vida que os animaria.

Segundo os mitos, no início Orun e Aiyê eram mundos interligados, até que houve uma ruptura – relatada através de várias versões, que, no entanto mantém a constante de que o humano transgrediu contra o Poder Supremo e uma barreira se levantou entre os dois mundos.

O privilégio desta livre comunicação foi cortado, sendo substituído pelo oráculo, legado por Orunmilá.

Orunmilá Babá Ifá
Orunmilá é o orisa senhor da sabedoria ( ogbon) e do conhecimento (imo) , que tendo adquirido o direito de viver entre o Orun e o Aiyê, tudo sabe e tudo vê em todos os mundos. Denominado elerii ipin (testemunha da criação), detém conhecimento do passado, presente e futuro de todos os habitantes do Aiyê e do Orun – e de como obter o sucesso em todos os âmbitos.Por isso recebeu o título de gbaiye gborun - aquele que vive tanto no céu como na terra, transcendendo espaço e tempo.

Orunmila é quem apresenta o destino ao reencarnante por ocasião da sua concepção (kadara) e, mediante a aceitação do Ori individual,o libera para o nascimento.

Por isso, conhece todos os destinos e como propiciar o sucesso em todos os âmbitos, alem de revelar o Orixá pessoal de cada um, ou seja, a substância da qual cada um foi extraído na atual existência e como integrar o indivíduo neste princípio divino. Orunmilá é o interventor e defensor dos seres humanos, sempre tentando minorar os sofrimentos e dificuldades que enfrentam na saga das suas sucessivas existências na Terra.

Conta o itan que:
“após permanecer na Terra por algum tempo, Orunmilá retornou ao Orun, esticando uma longa corda pela qual ascendeu. Os seres humanos ficaram totalmente desorientados,o caos, a fome e a peste imperaram na Terra, já que ele era o porta-voz da vontade de Olodumare. O ciclo de fertilidade das plantas e animais foi interrompido, trazendo ameaça de extinção. O clamor pela sua volta não foi atendido, mas deixou com seus filhos os 16 ikin (coquinhos de dendezeiro) , que se transformaram num importante instrumento de adivinhação denominado ikin. Daí se originou a outra denominação de Orunmilá : Agbonniregun ( agbon ti o ni regun - o côco nunca será esquecido). Entregou os ikin instruindo que sempre que desejassem as coisas boas e realizações positivas na vida, deveriam consultar os coquinhos”.

Daí nasceu o sistema oracular denominado Ifá, auxiliando os humanos nos seus problemas  cotidianos, nos conflitos e nas dúvidas existenciais, como mediador entre o humano e o divino. Devido a sua estreita vinculação com o oráculo, Orunmilá passou a denominar-se também
Babá Ifá (pai do Ifá). Uma modalidade oracular mais simples é o ibo e a mais popular das três é o opelê ifá. Apenas sacerdotes iniciados no culto de Orunmilá - os oluwo e babalawo – são credenciados para utilizar esses oráculos.                                          


Os oráculos são baseados no sistema binário e comportam 256 combinações matemáticas que definem os caminhos de Odu, com seus milhares de itan (mitos) e owe (parábolas). Sua missão foi organizar as relações humanas, ajudar na doença, orientar nas contendas de todo tipo de assunto, valendo-se para isto dos itans relatados pelos Odus.

Todo o corpo filosófico da religião yorubá se resume nesses signos de Ifá – os Odus , que por sua vez se subdividem em caminhos com os respectivos itans, que são mitos de instrução, orientação e aconselhamento. O nome de Orunmilá e o do sistema oracular opelê ifá muitas vezes se confundem e o culto a Orunmila passou a ser conhecido como Ifá.

Apesar de sua infinita sabedoria, Orunmilá condiciona-se, muitas vezes, ao poder do Orixá Elegbara / Exu – o transmissor do axé, representante da autoridade divina no âmbito cósmico e das leis da física. Sendo o eterno movimento com suas constantes transformações, Elegbara propicia toda a existência do Universo manifestado. Está na vibração dos elétrons e na órbita dos astros. Orunmilá utiliza-se, então do axé e funções de Elegbara para atuar e se expressar.

Já o oráculo merindilogun – o popular jogo de búzios – foi introduzido pelo Orixá Oxun e é a modalidade oracular utilizada pelos não-babalawos, ou seja,  iniciados no culto de Orixá e, ao contrário do opelê, dos ikin e dos ibo, pode ser manipulado por mulheres. No jogo de búzios utilizam-se 16 kawri (búzios) no qual respondem os 16 Odus principais, num total de 70 caminhos e os Orixás que falam através deles.

Independente da modalidade utilizada, para cada caminho há um itan a ser interpretado e o respectivo ebó (sacrifício) a ser, ou não, realizado.

Na tradição religiosa Ogboni-Ifá, nada se empreende sem prévia consulta ao oráculo, que é um instrumento de transmissão do aconselhamento divino para que situações sejam revertidas ou confirmadas. Com a anuência de Elegbara / Exu,os diversos Orixás se posicionam no jogo, respondendo, influenciando nas respostas e revelando-se como eledá (Orixá dono da cabeça) da pessoa que a ele recorre.

Da mesma forma que só se toma remédio quando se adoece , só se efetuam ebós , iniciações ou obrigações quando o oráculo prescreve – sempre lembrando que o futuro depende, em grande parte, dos nossos atos presentes.

Conforme informado anteriormente,o oráculo é a única opção autorizada e confiável quanto à definição do Orixá pessoal, responsável pela cabeça do ser humano.


Ori
Ori habita as cabeças humanas e como não existe, sob o ponto de vista físico ou mental, uma cabeça igual a outra, Ori representa a individualidade e é a sede das energias vitais e do destino. Simboliza o ápice do corpo humano, a parte mais alta e primordial, como morada do cérebro que controla o corpo inteiro e a razão. O líder ou chefe de qualquer organização é referido como olori - o cabeça.  Ori apresenta dois aspectos:
Ori ode -  o crânio humano, onde se situa o cérebro, sede dos processos do raciocínio e controle sensorial, abrangendo o consciente e o  inconsciente.
Ori inu - a mente espiritual, moldada pela divindade Ajala.
Compreende o Odu Olori, que é o signo regente, o destino que cada um escolhe, por livre arbítrio, antes de nascer. Aliás, este Odu, no qual estão  subentendidas as condições sociais / ambientais, predisposições positivas e negativas, assim como os fatos marcantes da vida, só pode ser identificado na iniciação de Ifá - e não através de cálculos vinculados a datas do calendário gregoriano ou num evetual jogo de búzios.O Odu Olori pode ser tratado, tendo realçados os seus aspectos positivos, mas nunca trocado. Há um itan que relata que "no dia em que Ori percebeu que estava prestes a reencarnar, reportou-se a Olodumare solicitando permissão para nascer na mesma família em que havia nascido antes. Foi permitido, sendo que Olodumare se reservou o direito de determinar o dia da sua morte, sem qualquer interferência de Ori. Por outro lado, o destino de Ori só poderia ser alterado mediante consulta a Ifá".
O oke iponri consiste na contribuição da carga ancestral / genética - também resultante de uma determinação cármica. O Orixá eledá é o Orixá principal (eventualmente associado a outros) , partícula divina que moldou o indivíduo e que pode servir de guia, inspiração e iluminação ao longo da sua trajetória evolutiva na Terra.
"Ifá reuniu todos os orixás e indagou: - quem pode acompanhar seu devoto numa longa viagem além dos mares e jamais retornar? A todos foi feita a mesma pergunta e, após vários oferecimentos com que eram agraciados, a resposta, invariàvelmente era : - depois de me fartar, voltarei para minha casa. Solicitado a elucidar a parábola, Orunmilá respondeu: - a única resposta é ... o Ori. Sòmente Ori pode acompanhar o seu devoto na viagem sem volta. Quando morre um sacerdote de Ifá, seus apetrechos devem ser deixados numa corrente de água. Quando morre um devoto de Xangô, suas ferramentas devem ser despachadas. Quando morre um devoto de Obatalá, sua parafernália deve ser enterrada. .. Mas quando os ser humanos morrem, a cabeça não é separada do corpo para o enterro. Lá está o Ori.

Sòmente ele acompanha o devoto a qualquer lugar, numa viagem sem volta além dos mares"

Assim, Ori é considerado o último acompanhante da pessoa ao morrer, pois pode permanecer,

como centelha eterna evoluindo de vida em vida, enquanto o Orixá retorna à sua manifestação primordial. Ori tem status de divindade e vem, na ordem de importância, antes mesmo do Orixá. Aquilo que não for sancionado pelo Ori, não poderá ser realizado pelo Orixá.  Ori detém o livre-arbítrio. Alguém pode ser contemplado com um destino predominantemente positivo, no entanto, uma eventual má conduta proveniente deste mesmo livre-arbítrio, poderá transformá-lo em desgraça. O oposto também é passível de acontecer, no sentido em que alguém pode tirar o melhor partido possível de um destino originalmente adverso. Iwa pele é aquilo que popularmente denominamos “sina”, ou seja, o destino moldado mediante a evolução espiritual que cada indivíduo vai galgando no decorrer das reencarnações.Embora a tradição yorubá não estabeleça prescrições e interdições, a extensa literatura de Ifá através das centenas de Odus fornece um código é tico bastante claro, onde não se concebem justificativas ou perdão divino para transgressões.  Cada um tem consciência, no seu dia a dia, do quanto a Lei Cármica é implacável e procura se conduzir de maneira a não precisar arcar com dolorosas conseqüencias futuras. Assim, iwa pele é um estado a se lapidar e exercitar constantemente, com a finalidade de aperfeiçoamento e obtenção de destinos cada vez mais positivos, angariando e refletindo felicidade.
Estando Orunmila presente no momento da criação do universo, o seu aconselhamento se resume na seguinte norma: "Caráter é tudo.Uma pessoa com Ori capaz, mas com caráter ruim, arruinará o seu destino" (Iwa nikan l'o soro o. Eni l'ori rere ti ko n'iwa, iwa l'l maa b'ori re je). O ideal de iwa é alá - a brancura símbolo de Obatalá - ou seja, a boa reputação , a pureza imaculada.
A filosofia de vida Ogboni-Ifá procura, desta forma, elucidar acontecimentos aparentemente incompreensíveis, que poderiam fornecer a concepção errônea e injusta da existência de favoritismo aleatório a indivíduos "eleitos de Deus"  no seio de um Universo - até onde nos cabe perceber - regido por Leis harmônicas e equilibradas.
Ela confere ao ser humano a dimensão exata da responsabilidade total sobre seus atos e omissões.Como a existência de um Mal absoluto e eterno - desafiando o poder supremo de Olodumare - é inconcebível, os únicos obstáculos que se opõem ao sucesso do ser humano em evolução são as próprias armadilhas e ilusões do plano material ao qual se vincula a vida na Terra. Cada Ori tem o seu destino e características próprias inerentes a um determinado momento. Em decorrência disso, não há uniformidade na maneira como se trata um Ori, ficando cada procedimento vinculado à consulta a Ifá. O que é positivo para um, pode ser negativo para outro, o que é positivo hoje, poderá não ser amanhã.

Filiação a um determinado Orisa não influencia o Ori. Por outro lado, as características do Ori podem conferir aspectos diversos a um mesmo Orixá individualizado. O contexto religioso Ifá proporciona recursos de interferência entre os aspectos positivo e negativo do destino, uma vez que ao sacerdote, mediante consulta ao oráculo, serão revelados os limites de uma possível manipulação. Em todo processo iniciático e também em outras ocasiões, a primeira entidade a ser  equilibrada / energizada é  o Ori, para que o indivíduo comporte e absorva a benéfica energia do orisa. A este ritual dá-se o nome de B'ori (bo = alimentar, fortalecer   ori = cabeça).

Os Orixás                                                                   
Como parte da criação do Orun e do Aiyê, Olodumare criou uma infinidade de hierarquias atuantes nos diversos planos do Universo.

Dentre eles situam-se  os Orixás - entidades intermediárias  responsáveis primordiais pelas funções relacionadas aos diversos reinos da natureza na Terra. Tratam-se de Seres Divinos , facetas emanadas diretamente da Divindade Suprema Universal.

Os Orixás atuam de acordo com as funções que lhes são delegadas por Olodumare, inclusive como mediadores entre Ele e os seres humanos.

A criação da Vida na Terra foi delegada ao Orixá Obatalá ( o rei do pano branco que esconde a vida e a morte ), que com o seu ofu-rufu (o sopro divino) permeou várias outras dimensões além da física.  Dele emanaram os outros Orixás, com a tarefa de exercer domínio pleno sobre os diversos reinos e elementos da natureza terrestre, porém dentro dos limites e tarefas por Ele estabelecidos.

Há um itan (mito) que relata como o corpo de Obatalá foi atingido e partido em mil pedaços.
Ao receber a notícia, Olodumare designou Orunmilá para recolher todas as partes e traze-las de volta.

Recolheu-os numa grande cabaça, assegurando o seu renascimento no Orun. O restante foi espalhado por todo o mundo, fazendo com que de cada um nascesse uma divindade. Por esta razão, considera-se Obatalá o Orixá maior, dentro do qual todos estão contidos – como a cor branca contém todas cores.

O termo Orixá foi, inicialmente, utilizado para designar Obatalá, conhecido como Orisa nla ou Osaala.

A energia vital – axé – que permeia todas as forças da natureza é parte do Orixá, que representa o aspecto inteligente e estabelece um elo entre a humanidade e Olodumare.

Textos mais antigos falam de igba male ojukotun, igba male ojukosi : duzentas divindades do lado direito e duzentas divindades do lado esquerdo – mais um.

A concepção de características antropomórficas deve-se à condição arquetípica que lhes é inerente. No entanto, cabe ressaltar que os Orixá não pertencem à cadeia de evolução humana.

Como personificação das mais violentas , grandiosas e incontroláveis forças da natureza,força pura, axé (energia vital) esmagador, é evidente que Orixá desvincula-se à cadeia cármica da evolução humana.

Conceber Orixá como um ancestral humano divinizado é um belo mito que confirma a filiação humana a determinada linhagem dos reinos da natureza com seus quatro elementos: água, terra, fogo e ar. Ancestrais humanos podem ter se tornado encantados, pois a gama de seres divinizados tutelares é imensa. Aliás, antes da ruptura entre Orun e Aiyê – seres pertencentes a hierarquias não-humanas engravidaram mulheres, dando origem a estirpe dos chamados “semi-deuses” , vastamente mencionados, por exemplo, na mitologia grega.

Diante de recentes teorias que ousam atribuir a origens não-terrestres o progresso tecnológico não condizente com o adiantamento da época – que certas civilizações arcaicas evidenciaram – poderiam os Orixás antropomorfizados estar incluídos nesses grupos.  Humanos ou não, é importante notar que deles se originaram as instruções que até hoje seguimos, com relação ao corpo ritualístico / mágico da religião.

Os Orixás constituem energia pura que interfere, também, na existência dos seres humanos, já que conosco compartilham  da natureza terrestre e concorrem diretamente para a nossa formação como seres individualizados. No momento em que o ser humano vem a encarnar, aceitando o seu destino, seus corpos são criados com a energia predominante de um Orixá e  a de outros, em menor grau, formando assim um complexo inédito.

Rituais                                                                          
As práticas e rituais da religião yorubá têm por finalidade a sintonia e integração do ser humano com essa energia divina da qual foi formado.

Há pessoas que dispõem do dom de  manifestar fìsicamente a presença do seu Orixá. Esta manifestação é apenas uma forma de sintonia, nada tendo a ver com mérito ou elevação espiritual. Em alguns seres humanos, a predisposição inata e rituais específicos fazem aflorar com maior intensidade esta energia pura , que é o Orixá, podendo ocasionar os fenômenos do transe e da incorporação, quando o arquétipo do Orixá se manifesta de forma plena.

De um panteão que atingia a casa das centenas, o número dos que transpuseram a barreira  do interesse local não atinge a casa das duas dezenas, sendo os mais populares: Orunmilá, Exu, Obatalá, Ogun, Oxossi, Ossain, Oxumarê, Obaluaiê, Ibeji, Erinlé, Oxun, Olokun, Yemanjá, Oyá e Xangô. Há também culto a  Egungun e Iyami Oxorongá, que não são Orixás, mas ancestrais.

Sacrifício
“Orunmilá, encantado com as prodigiosas propriedades das folhas, reveladas por Ossain, decide mante-lo ao seu lado durante as seções de adivinhação, a fim de guiá-lo na escolha dos remédios que deverá prescrever aos doentes. Uma surda rivalidade se estabelece entre ambos, cada um se vangloriando de ser mais importante do que o outro. Ossain reivindica direito de mais respeito, alegando ter chegado ao mundo antes de Orunmilá.O rei Ajalaye resolve por fim à disputa, submetendo-os a uma prova e os convoca, acompanhados dos seus primogênitos. Orunmilá chega com seu filho Sacrifício e Ossain apresenta seu filho Remédio. Os dois serão enterrados durante sete dias e aquele que sobreviver à provação e primeiro responder ao chamado que será feito no fim do último dia, verá seu pai declarado vencedor.

Sacrifício e Remédio foram enterrados em duas covas abertas para a prova. Retornando a casa, Orunmilá consultou o oráculo, que o aconselhou a oferecer muito ekuru, um galo, um bode, um coelho, um pombo e dezesseis búzios a fim de garantir a vida do filho. A oferenda foi colocada na estrada, na encruzilhada, aos pés de Exu e no mercado. Exerceu seu poder sobre o coelho sacrificado. Este cavou um túnel até a cova de Sacrifício e a ele levou alimento.

Remédio, o filho de Ossain , nada tinha para comer, mas possuía talismãs que agiam sobre a terra e lhe permitiram chegar até Sacrifício, no fundo da sua cova. Remédio pediu-lhe comida, mas Sacrifício negou, dizendo que assim estaria assegurando a vitória de Ossain contra a do seu pai, Orunmilá. Afinal, chegaram ao acordo de que daria comida a Remédio, sob a condição de este permanecer calado quando fosse chamado, ao final da prova.

No sétimo dia os juízes vieram e chamaram, em vão, por Remédio. Concluíram que estava morto. Em seguida, chamaram por Sacrifício, que respondeu imediatamente. Sacrifício está são e salvo. Em seguida, para surpresa geral, sai Remédio, igualmente vivo. Ossain pergunta ao filho a razão do seu silêncio, fazendo com que perdessem a prova, e Remédio revela o pacto feito com Sacrifício".

Moral da história:

“Sacrifício não deixa Remédio falar. Portanto, Sacrifício é mais eficaz que Remédio e, por conseguinte, Orunmilá ocupa uma posição mais elevada do que Ossain”. Este itan pretende demonstrar que, embora a presença das folhas seja essencial dentro do culto yorubá, os ritos sacrificiais são primordiais. Se, por um lado, o segredo está nas folhas, elas se tornam verdadeiramente eficazes não devido à sua composição química, mas através do encantamento, ofó, que desencadeia o potencial inerente a cada espécie vegetal.

Toda a prática religiosa yorubá se baseia num princípio de permuta – que é o que se pode observar em todos os âmbitos da Vida no planeta Terra. O processo vital transcorre mediante permanente alimentação e renovação no breve hiato entre nascimento e morte. Energias são alimentadas e transferidas.

A sobrevivência do ser humano na Terra exige sacrifício constante. Sacrifício de tempo, de privação de alguma coisa em detrimento de outra, o sacrifício dolorido das transformações e da oferta de dinheiro obtido à custa de esforço através do trabalho: tudo girando num incessante processo que se resume em dar e receber. As oferendas sacrificias movimentam axé do fluido vital liberado que, atuando num âmbito não-físico altera situações indesejadas na vida humana, inclusive de alta gravidade. Os sacrifícios animais praticados pela religião yorubá , além de movimentar ase, servem para alimentar as pessoas, uma vez que a carne é, na maioria das vezes, consumida. Cabe ressaltar que, ao contrário do que ocorrre nos matadouros, a vida animal que se vai é rezada e seu espírito encaminhado com todo respeito.

O sacrifício animal costuma causar celeuma em ambientes estranhos à cultura yorubá – aliás, ambientes não-vegetarianos. No entanto, curiosamente, não se tem o hábito de questionar como e por que animais são mortos quando se trata de algum petisco gastronômico, um sapato ou casaco de couro ou um tapete de pele que não salvam a vida ou restabelecem a saúde de alguém, mas se destinam exclusivamente a saciar a sua vaidade.

O ser humano, fazendo mau uso do seu livre-arbítrio, muitas vezes se coloca em situações em que a negatividade do seu destino aflora, trazendo desgraças indesejadas. Olodumare ordenou a Orunmilá que ensine os seres humanos a restabelecer o ponto de equilíbrio necessário em seus Ori, pois, se por um lado, a bondade de Olodumare é evidente, a sua severidade é altamente rigorosa.

Ebó – Oferenda
Ebó é um ritual de sacrifício em forma de oferenda, que inclui elementos determinados pelo Odu revelado no oráculo, utilizando energias - ase - dos diversos reinos da natureza para obtenção / reversão. Vem de bo – alimentar o Orixá. Esta oferenda pode ser animal, vegetal, ou incluir outro tipo de sacrifício. Os ebós servem como forma de apaziguamento para evitar ou amenizar alguma situação dolorosa, substituição diante de perigo eminente, encaminhamento de bom augúrio.

Bori – Alimento para a Cabeça
Bo ori – alimentar o Ori, é um ritual que tem por finalidade a restauração do equilíbrio entre Ori ode e Ori inu. Tendo Ori status de Orixá, responde no oráculo. Todas as oferendas que alimentam o Ori são ditadas pelo oráculo - mas sempre com aquiescência do próprio Ori - na qualidade e quantidade adequadas ao momento e situação.  A energia de um Orixá só é fixada se o Ori permitir. Como todas as possibilidades de sucesso ou fracasso dependem do Ori, o Bori é o rito especial que propicia a sua positividade. A sua finalidade é, através de manipulação do ase,  proporcionar ao Ori , como entidade regente do destino da pessoa, o ponto de equilíbrio ideal para a sua auto-realização.  Na religião yorubá o Ori é preparado para atuar com discernimento nos constantes conflitos com que se deparam  o espírito – ori inu – e a matéria – Ori ode no decorrer da sua existência terrena.

Igbere - Iniciação
A presença do Orixá na vida de uma pessoa depende do fortalecimento do Ori para acoplamento do seu axé,  através do ritual de iniciação. Após diversos tipos de ebó, banhos de folhas  e bori, o iniciando está purificado e fortalecido para ter plantada no seu corpo a energia do seu Orixá tutelar. Trata - se de ritual complexo e com características sob medida para a entidade única que é o iniciando em questão e o seu Orixá. O ritual de iniciação  não decorre de desejo próprio, mas depende de prescrição oracular e conforme o próprio termo, marca, não a concretização, mas o início de um aprendizado e desafios constantes que requerem disciplina e dedicação espiritual pelo resto da vida. Não implica em qualquer tipo de submissão contrariada, pois o Ori é soberano no seu livre-arbítrio.  No entanto, uma vez tendo vivenciado a  sublime e divina presença do Orixá, o afastamento deste, mesmo que voluntário, se faz sentir como um vazio sombrio que pode até ser confundido – errôneamente - com castigo. O Orixá não necessita infringir castigos, primeiro porque, como energia da natureza, não depende da adesão de devotos - nós é que precisamos do Orixá - segundo, porque a sua simples ausência em nossas vidas, já se caracteriza por si só, como desgraça.


Ogboni
Segundo um itan do Odu Irosun-Iwori, “num antigo período da história da humanidade, esta vivia em total anarquia, promovendo sucessivos incidentes de roubos, assassinatos e violações de toda ordem de abuso aos códigos éticos ditados pelos ancestrais. Alguns habitantes pediram a interferência de Orunmilá, para que colocasse um paradeiro naquela situação alarmante. Orunmilá ordenou que se realizassem sacrifícios e aqueles que cumpriram as instruções de Ifa prosperaram em segurança. Depois disso, Orunmilá retirou-se aos céus, entregando a Edan a responsabilidade sobre a Terra. Edan firmou um pacto e aqueles que juraram mantê-lo, puderam viver em paz, harmonia, justiça e prosperidade. Após longo tempo de permanência na Terra, Edan retornou ao Orun, delegando a um grupo de pessoas responsáveis a tarefa de supervisionar e fazer cumprir as leis estabelecidas. Este grupo se uniu em fraternidade, tornando-se conhecidos como Ogboni.”

Já um outro  itan relata que  “nos primórdios dos tempos na Terra, Iyami, a grande mãe ancestral, deu à luz 16 filhos. Os dois primeiros chamaram-se ogbo e oni, que começaram a lutar entre si, promovendo o caos e a desordem universal. Vendo que seus filhos provocariam a destruição, obrigou-os a realizar um pacto sagrado , assegurando a manutenção da verdade, da lealdade e da justiça entre si.  Deste pacto nasceu a denominação Ogboni.- primeira sociedade secreta, que remonta dos primórdios de Ilê Ifé e se espalha por todos os territórios yorubá”.

Outra interpretação do termo “Ogboni” seria ogbon (sábio) e eni (um que é). Ainda hoje, Ogboni mantém ritual iniciático baseado num pacto que estabelece e faz cumprir o seu elevado código ético, zelando pela justiça , verdade, lealdade e proteção.

A justiça de Ogboni é firmada com a própria Terra – Onilé, que detem a prioridade em todos os ritos.

Dela sai o sustento de todos os seres que nela habitam, dela saiu o barro primordial com que Obatalá modelou o ser humano. Dela viemos, nela nascemos e recebemos a oportunidade da vida, dela somos alimentados e a ela alimentaremos, por ocasião da morte.

Conta o itan que “Olodumare concedeu cada reino da natureza a um Orixá . Assim, sempre que um ser humano expressasse alguma necessidade relacionada a um dos reinos, deveria pagar uma prenda em forma de sacrifício ao Orixá correspondente.  Restou, de todos os reinos, o próprio planeta Terra, que foi concedido a Onilé. O seu tributo seria a própria Vida, pois nela repousam os corpos e restos de tudo o que já não vive. Onilé deveria ser propiciada sempre, para que o mundo continuasse a existir, gerando continuamente, nova Vida e assegurando a continuidade do planeta”.

Com o objetivo de promover a harmonia com a natureza, Ogboni venera Oni-ile – os senhores da  Terra - como fonte da Vida , simbolizada pelo orisa Edan. Considerando que os demais Orixá chegaram – ou se manifestaram na Terra – numa fase subseqüente a sua formação, Ogboni vincula-se, primordialmente, a Edan. Daí resulta que todo aquele que transgredir o pacto estabelecido pela Lei de Ogboni, deverá,– incondicionalmente, prestar contas à Edan – a própria Terra.

O chefe do culto de Ogboni é um iniciado que atinge o grau de Oluwo ( pai do segredo) e é portador do shaki – uma estola que o distingue como detentor de honra e respeito.


Bibliografia
Beniste, José – Orun Aiye , o encontro de dois mundos – Bertrand, 1997
Neimark, Philip John – The Way of the Orisha – Harper, 1993
Oxalá, Adilson de – Igbadu, a cabaça da existência – Pallas, 2005
Rocha, Agenor Miranda – Caminhos de Odu – Pallas, 2003
Santos, Juana Elbein dos – Os Nagô e a Morte – Vozes, 1988

Eliane Haas é pianista, Mestre em Música, Professora universitária.

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