terça-feira, 19 de julho de 2011

ATOTÔ OBALUAYÊ: A dança dos signos - Análise semiológica

“ O objetivo da pesquisa semiológica é  reconstituir o funcionamento dos sistemas de significação diversos da língua”.(R.Barthes)


O interesse central do presente estudo é a análise da indumentária de Obaluayê, numa perspectiva semiológica. Os traços que me interessam como ponto de vista para empreender a pesquisa são a predominância das cores preta, vermelha e branca; a presença do instrumento Xaxará; a constância do uso da palha da costa; do Azê de palha; dos búzios na ornamentação e das cabaças. São esses elementos da indumentária que serão analisados no decorrer deste capítulo. São os “signos”, usando a terminologia empregada por Peirce, capazes de dar origem a outros signos que, sob “certos aspectos”, representam alguma coisa para aqueles que usam, cultuam ou participam do culto a esta divindade. Ampliar o sentido “desses aspectos” permitirá a ampliação do próprio conceito de signo, que em Peirce tem uma relação com o caráter descritivo (e não explicativo) do fenômeno estudado. Desse modo, chegarei a uma leitura especulativa mais abrangente, pois ampliarei o conceito de signo, admitindo a definição saussuriana de que o signo é a reunião da dicotomia significante (substância material, forma, regras, expressão) e significa do (o conteúdo, a palavra transmite a imagem da coisa e não a coisa). Estarei com este procedimento, reconstituindo o funcionamento do mito - orixá Abaluayê, na medida em que levantarei os sentidos imanentes em sua vestimenta e em seu culto. Para Roland Barthes, o processo que une o significante e o significado produz o signo. Farei o caminho inverso, partindo dos signos presentes no culto a Obaluayê e reeditando um movimento de representações análogas, me utilizando de recortes, correlações, contrastes e contiguidades, poderei compor e apreender o mito Obaluayê e, com este procedimento, contribuir para a permanência dos cultos e o entendimento de suas funções. Um primeiro problema se estabelece: estou diante dos termos Omolu, Obaluaiê ou Abaluayê ou Obaluaiyê. Fui buscar resposta em depoimentos. Em Agenor Miranda Rocha encontrei que geralmente se diz “que Obaluayê é o moço e Omolu é o velho, mas são apenas dois nomes para uma mesma entidade"...

(Rocha, A.M. p.73)Joaquim Motta foi além dessa dicotomia velho/novo e diz que, por ser um orixá de muito respeito, não se pronuncia diretamente o seu nome, pois, “na realidade, não é Omolu, não é Obaluayê. Em uma região o nome do orixá é Zakapata e em outra parte da África é Xapanã”. Na entrevista de Ildásio Tavares encontrei uma detalhada explicação mais para a questão da denominação do orixá

 
Sobre ele esclarece que, devido ao mistério que envolve esta entidade, algumas restrições são mantidas em segredo. O verdadeiro nome você não pode saber.

“está dentro do princípio esotérico do som, onde o verdadeiro som presentifica, não pode ser dito”. Essas denominações encontradas nos livros seriam manifestações diferenciadas de um mesmo orixá, aspectos diferentes que apontam para qualidades distintas. Ildásio explica: “São 13 as qualidades... É, mas por essa divisão entendem-se os aspectos diferentes do orixá. Um orixá mais velho, mais agressivo, menos agressivo, mais ligado à doença, menos ligado. São aspectos diferenciados de um mesmo santo, orixá. Por exemplo, Ogum tem sete qualidades. Iansã tem nove, acho que Oxóssi também tem sete. Oxum tem dezesseis qualidades, Oxalá, logicamente, tem duas: Oxalufã e Oxaguiã (ouOxalaguiã), a forma jovem e a forma velha, a forma estática e a forma dinâmica. Nem Obaluayê, nem Omolu, são nomes, todos são Oriki do mesmo santo, que é uma forma de saudação, de reverência. Omolu (ou Omulu) quer dizer filho da terra, e Obaluayê é Rei dos espíritos da terra. Em Cuba se chama Babaluaiê, pai dos espíritos da terra. O nome você não pode saber, está dentro daquele sentido esotérico do som, que ao ser emitido, presentifica, não pode ser dito, é o inefável. Se você, por exemplo, quiser pronunciar o verdadeiro nome de Xangô, você tem que ter seis obi na mão direita e seis na mão esquerda e seis orobô na boca, aí você pode mencionar o verdadeiro nome de Xangô. Orobô é a noz de cola, é também característico do culto de Xangô, só entra no culto desse orixá. O obi já é geral. Ildásio Tavares acrescenta que, com relação à Omolu, são 13as qualidades: “O meu é Jagum, que é um Omolu guerreiro jovem, menino, por exemplo... daí esse meu temperamento. Há o Zoani ou Azôani, esse é bem Jeje, este veste palha azul. Há o Arauê, o Xaponã e o Intotu”. Consciente da complexidade que envolve o estudo de um orixá, fiz o cruzamento das informações coletadas pelos informantes e cada vez mais fui me convencendo da imensidão de signos e do mundo mágico que envolve o orixá. Inicio com uma citação do Prof. Agenor, que diz respeito ao traje “coberto de palhas” do Omolu: “Na verdade, ele se cobre porque desvendar sua máscara seria o mesmo que desvendar o mistério da morte”
(Rocha, A.M.p.73).
Longe de querer desvendar os seus mistérios, fiz o levantamento das questões relacionadas aos paramentos e indumentária de Obaluayê, a partir do que me falou Joaquim Motta: “Eu já lhe disse que ele carrega todos os idãs, todos os micróbios, vamos colocar assim, todas as coisas que trazem à doença... Há inclusive uma cantiga em que mostra os dois lados, o verso e o reverso do orixá... O corpo dele é terra e também é formado disso da terra, além de trazer as coisas que eu lhe disse... a varíola, a febre. Ele tinha deformações... É um orixá que quando era convidado para uma festividade, ou era para servir de chacota ou então as pessoas se assustavam e não iam para as festas por causa dele. Mas, ele tinha vontade de participar, ele fazia parte do panteão. Foi quando, realmente, Ogum preparou para ele um azê, que é o nome do filá de palhas que ele usa.”
......
O Prof. Agenor M. R. observa: “Omolu venceu a morte, tornou-se o médico dos orixás, chamado Onixegun. Omolu é considerado o dono da morte e, por consequência, também
 
SAMUEL

ABRANTES
66absorção dos raios luminosos. Por conseguinte, o preto não chega a produzir cor na medida em que reflete o mínimo de raios. Essas definições ajudam a compreender a relação de negação ou síntese de luz que o preto e o branco abarcam. E estabelecem o princípio existente entre as cores e a sua simbologia. Preto e branco servem de suporte para as correlações simbólicas de morte x vida, que são representações análogas às dicotomias já levantadas sobre Obaluayê. As correspondências antitéticas fazem parte da natureza primordial dos orixás e dos mitos. Essa dubiedade reforça suas características. Chevalier ressalta que o preto, ao mesmo tempo em que é símbolo de luto no Ocidente, representa a vida no Egito e na África do Norte. Seria a cor de uma terra onde a fertilidade prospera. Essa associação remete a cor ao princípio da vida. O preto seria a expressão das águas fecundas, profundas, que abrigariam o sopro de vida, onde ela pulsa, latente, interna. Outra imagem é o preto como a grande escuridão da noite e dos mistérios que esta nos reserva: “O preto reveste o ventre do mundo, onde opera o vermelho do fogo e do sangue, símbolo da força vital”.
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Mais uma vez estou diante do estabelecimento de uma relação que aponta diretamente para as cores presentes na indumentária de Obaluayê e que condicionam automaticamente as leituras especulativas dos símbolos veiculados. O preto e o branco permitem muitas outras considerações. Além da escuridão, o preto seria o espaço do silêncio, dona da, da morte. O que diretamente se liga à ideia de renovação e ressurreição. Por outro lado, o despojamento do preto, sua neutralidade, pode ser vista como renúncia às vaidades do mundo. Isto quando se consideram os pressupostos da doutrina católica ou do Islã em que os mantos, que proclamam a fé, têm que ser pretos. Outro fato distante da cultura africana, mas que reforça a ideia contida no uso do preto e similar à função desempenhada por Obaluayê, é a representação na cultura etrusca de um “guardião das almas” com uma túnica negra e com as avermelhadas. No Gabão, há a representação de um guardião dos santuários onde são depositados os crânios dos ancestrais, com uma palheta de cor que vai do preto aos reflexos de vermelho. Isto reforça os conceitos elaborados na figura de Omolu como condutor das almas, protetor dos mortos etc.. São  incidências de um mesmo conceito veiculadas por culturas diametralmente opostas. O preto está sempre associado ao princípio, à obscuridade da origem em todas as religiões. Este “caos”, que evoca o momento da criação e os instintos primitivos do ser humano, do movimento que passa da ignorância ao conhecimento, desse percurso de esclarecimento que é a trajetória da vida. Sair do escuro em direção à clareza de idéias, do saber. Ou penetrar no mistério, no obscuro das idéias. São imagens que evocam o sentido do branco e do preto. A outra cor presente na indumentária de Obaluayê é o vermelho terracota. Essa tonalidade de vermelho remete diretamente ao princípio já visto, de terra e vida. Para a simbologia, o vermelho representaria essencialmente o elemento luz, de força, de vitalidade. Joaquim Motta relacionou o branco e o preto à ligação entre o Aye e o Orun. Seria a intermediação entre a realidade e a fantasia, o sopro de vida que o vermelho-sangue presentifica: o princípio dessa força que o vermelho assimila, que é energia, que alerta, que detém. Vermelho, branco e preto estariam interligados não só pela presença na indumentária de Obaluayê mas porque participam simultaneamente de um mesmo universo semântico, de representações análogas, de significações múltiplas, sempre relacionadas à vida e morte. O vermelho retirado do barro da terra é eminentemente sagrado e também condensa a idéia de secreto, de mistério vital, do coração e da interdição aos não-iniciados. Remete à imagem do ventre, onde morte e vida se transmutam, ambivalência de sentidos, de representações ambíguas que apontam para o interno, interligam conceitos e invertem polaridades. O sangue derramado, sentido de morte, de perda da vida, e o sangue que corre nas veias, que impulsiona, que está vivo, que circula. Essas correspondências antecedem o sentido que determinadas cores assumem na indumentária de quem as usa. Assim, ao usar o vermelho, as expressões essenciais são expostas e indica a passagem, a extensão de um mundo (do real, dos objetos) aos sentidos imanentes expressos que servem para compor o mito.

Trecho do livro: A Roupa de Santo -OMOLU. Sobre os signos de Omolu /Samuel Abrantes  
Editora: Ágora da Ilha  Ano 1999

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